domingo, 18 de janeiro de 2015

o elevador de bambu

certa vez houve uma encruzilhada. resolvi virar à direita.

o caminho me levou ao vale de um árido cânion. a paisagem era exuberante sob a luz do fim da manhã. porém, à medida que andava, o trajeto foi se tornando claustrofóbico. as paredes do precipício foram, a cada passo, se fechando.

até me levar a um beco sem saída.

minto, havia uma saída. cercado por monumentais paredes rochosas impossíveis de serem escaladas, avistei ao término da trilha um formidável elevador feito de bambu, cordas e roldanas. sugerindo que o percurso seguia do alto.

dentro do engenho, um rapaz alto, magro e vestindo uma velha camisa encardida fazia a manutenção de algumas peças. "você me levaria para cima?", perguntei gentilmente ao ascensorista. "sou um prestador de serviços. você precisa pagar um tributo para alcançar o seu destino", respondeu de forma categórica.

estava ficando tarde e logo iria escurecer. dar meia-volta, a fim de rever a escolha feita na encruzilhada poderia ser perigoso. como não havia ouro comigo, fui obrigado a improvisar. "não tenho ouro, mas compreendo que a lei natural das coisas se baseia na troca. tenho algo a lhe oferecer", disse ao rapaz, do qual, agora, eu tinha sua total atenção. "e o que seria?", respondeu curioso. "ambos temos algo em comum. nos movemos. eu em direção ao horizonte. você em direção ao céu e ao chão. a diferença crucial é que eu não me repito. persigo o desconhecido. enquanto você está preso a um vai-e-vem sem novas paisagens", elaborei.

"proponho uma troca," concluí, "se me deixar subir, assumo seu posto por seis dias completos. torno-me o ascensorista e você o andarilho. assim, poderá andar a esmo e se deparar com incríveis surpresas pelo caminho. ao final do sexto dia, você volta e eu sigo andando".

o rapaz aceitou o acordo de bom grado.

subimos e, do alto do desfiladeiro, ele tomou seu rumo. como combinado, assumi suas funções. raros errantes passaram por ali naquele meio tempo. isso tornou a experiência entediante.

foram seis longos dias.

ao cair da sexta noite, o ascensorista não havia voltado. ao raiar do sétimo dia, segui meu caminho prontamente. meu débito estava pago.

não vi nenhum mal em deixar o elevador de bambu sozinho. talvez o rapaz tivesse se atrasado. ou se perdido em alguma aventura. ou mesmo desistiu daquela vida, reconhecendo-se, com a oportunidade, um andarilho.

talvez um novo ascensorista aparecesse ao seu devido tempo.

eu estaria longe quando isso acontecesse.

sábado, 17 de janeiro de 2015

o pouso da suindara

andei por um ano e dois meses sem sair do lugar.

foi um momento desolador da jornada. 

acelerava o passo. corria. parava. voltava um pedaço. saía da trilha. nada parecia funcionar.

atrás de mim estava o portão de madeira, deteriorado pelo tempo, pelo qual entrei. por mais que andasse, não conseguia me distanciar dele. à minha direita, uma floresta de árvores altas e folhas escuras desenhavam uma sombra desconfortável. à esquerda, jazia a carcaça de um velho tronco jogado ao chão, servindo de base para um tapete de musgo. à frente, uma ponte condenada cortava um riacho quase seco.

não importava em que direção avançasse, eu nunca alcançava o meu destino. por mais que ele estivesse ao alcance dos olhos. mesmo exigindo o máximo desempenho de minhas pernas, permanecia estacionado.

a esperança esmorecia a cada passo.

em meados do infrutífero percurso, lá pelo sexto mês, uma suindara sobrevoou a paisagem eterna e pousou em minha cabeça. ali ficou durante todo o resto do período, apenas observando minhas inúteis manobras para escapar do trajeto imoto.

ao final do segundo mês após o aniversário de um ano da desolação, a suindara falou.

"você não sai do lugar porque você não caminha sobre o chão", disse a ave de face pálida e olhos negros. "se isso que piso não é o chão, o que seria?", retruquei exausto até mesmo para me surpreender com a quebra do silêncio. a emplumada criatura explicou, do alto de minha cabeça, que eu estava andando sobre um pequeno broto de planeta. ele não germinou e jamais tomaria seu lugar no universo. o cadáver de uma semente esférica que deslizava sobre o seu próprio eixo, sem atrito, girando de acordo com os passos que eu dava.

súbito: realizei que não andava. apenas fazia uma bola de barro girar sob os meus pés.

"lá do alto, onde eu voava, percebi isso. pois o que é voar senão ganhar perspectiva?", concluiu a, até então, calada companhia. "se você sabia disso, por que não disse antes?", indaguei cansado demais para ficar furioso. a suindara disse não haver entendido que eu estava em apuros. pensou que se tratava de um espetáculo circense e parou para admirar o minha aparente performance artística.

"bem, eu não sou malabarista. sou andarilho. preciso voltar a andar", desabafei. "você não conseguirá chegar à ponte, ou mesmo voltar ao portão. pelo menos não com pernas", sentenciou a ave. "então voe e me carregue junto com você. é o mínimo que pode fazer depois de tantos meses de entretenimento involuntário oferecido por mim", rebati.

"sou apenas uma coruja. como poderia carregá-lo comigo no céu?", questionou.

"você fala. e corujas não falam. se pode travar este debate comigo, então poderá qualquer coisa. acredite e conseguirá", respondi.

ela acreditou. e voou comigo para longe daquela armadilha giratória, onde pude, finalmente, voltar para o meu caminho. agradeci a ajuda. a suindara agradeceu o pocket show.

sentei no chão por um momento, para recuperar o fôlego. e depois segui, efetivamente, andando.

sexta-feira, 16 de janeiro de 2015

o milagre do poço

andava eu, como sempre. desde sempre.

o caminho era agradável. o cenário oferecia uma certa porção de natureza com cores vibrantes. ocasionalmente pássaros desenhavam o céu com canções suaves.

eu sorri.

logo à frente, no trajeto, havia um poço interditando a passagem. um senhor bastante idoso repousava serenamente num banco ao lado. parecia vigiar o acesso.

"o que você espera?", perguntei ao me aproximar do sujeito que olhava para mim de forma curiosa. "espero chover para encher o poço. deixei o balde cair por acidente e, sem a corda, só um transbordamento poderá trazê-lo de volta", ele demorou a responder. "que pena, eu não levo corda comigo. do contrário, eu o ajudaria", respondi. ele, então, resolveu se levantar. o fez de forma lenta e cautelosa, não abusando de sua já avançada idade. "não se preocupe, o balde virá na sua hora. você pode seguir com a sua jornada, mas não sem antes olhar para dentro do poço", determinou o ancião.

"por quê?". a pergunta veio de mim com muita naturalidade.

"o poço é um pedágio", disse o velho. "assim como a corda, não levo ouro comigo", salientei. "não é pedágio que exige dobrões", ele prontamente corrigiu. então explicou que o tributo, na verdade, era passar pelo milagre do poço. ao mirar dentro dele, bem no fundo, eu vislumbraria a história de minha encarnação passada. o preço seria esquecer tudo o que foi visto, mas permanecer com o sentimento decorrente da experiência oracular.

então o fiz. visto que era um pedágio. e eu precisava seguir em frente.

sei que vi algo. mas jamais saberei o quê. como prometido, a lembrança se foi no segundo após desviar o olhar do interior do poço. mas ficou uma ansiedade galopante que ameaçava expulsar meu coração pela boca.

deixei de sorrir.

o velho acenou de forma condescendente, como quem agradece pelo gesto. e voltou a se sentar com a mesma dificuldade que se levantou. resolvi seguir em frente. os primeiros passos para além do poço foram hesitantes. não tinha corda, nem ouro. mas agora carregava na bagagem um medo irracional. de não saber exatamente o que está acontecendo e do que poderá vir a acontecer.

naquele dia me tornei um refém da expectativa. e até agora ninguém apareceu para pagar o resgate.

quarta-feira, 14 de janeiro de 2015

a cidade invisível

estive andando por tanto tempo que nem mesmo conseguia quantificar.

horas? dias? séculos?

era uma trilha monótona. não haviam paisagens nem surpresas pelo caminho. há muito que o horizonte não passava de uma indolente linha reta. foi quando eu me dei conta.

eu estava passando por uma cidade invisível e intangível. não era uma cidade fantasma, pois fantasmas dedicam-se a assombrar. o que não era o caso. jamais poderia interagir com seus habitantes pelos usuais meios sensoriais. visão, audição ou tato não se aplicavam à realidade deste local. espero não ter tropeçado em ninguém. teria sido uma tremenda gafe!

fiquei constrangido. o povo nativo possivelmente acreditou que eu era antipático e pedante. eles não poderiam supor que eu não conseguia percebê-los. até então.

parei por dois minutos e deduzi que não iria me comunicar com eles de forma tradicional. precisaria usar a imaginação. era o que eu tinha à mão, pelo menos. somente a privação de sentidos me colocaria em contato com esta cidade. parei por um instante, respirei fundo e fechei os olhos.

foi então que uma bela cidade se apresentou à minha frente. onde viviam pessoas muito acolhedoras e voluntariosas. um sujeito alto, que ostentava um farto bigode, me convidou para ficar um tempo na cidade. me pareceu ser uma espécie de líder do grupo. "você precisa descansar", insistiu ele. agradeci a hospitalidade, mas disse que precisava seguir andando. perguntei se faltava muito para chegar em um local passível de ser reconhecido pela retina ocular. ele disse, então, para seguir fiel ao limiar da visão. que, em algum momento, despontariam vetores mais verticalizados.

me despedi, abri os olhos e segui andando.

segunda-feira, 12 de janeiro de 2015

o primeiro passo

sou um andarilho. eu ando pelos mundos.

é uma história sem "tudo começou". primeiro porque se trata de minha história, não de tudo. segundo porque sou incapaz de lembrar em que momento me tornei um andarilho. talvez porque eu não tenha me tornado, visto que sempre fui. e o fio da meada se perdeu naquela vez em que cheguei a uma aldeia deserta habitada apenas por uma bruxa.

já estava de prontidão à beira do caminho, na entrada da aldeia, enquanto eu me aproximava do seu amontoado de cabanas desertas. como quem havia previsto minha chegada. uma velha senhora de cabelos grisalhos e pele muito alva contrastando com as vestes escuras. ao me deparar com ela acabei dizendo "você é uma bruxa". mas não quis dizer, só pensei. veio pra fora, ela lançou um feitiço que fez meus pensamentos fugirem pelos meus lábios. a bruxa não gostou das palavras surrupiadas.

ela, então, resolveu me castigar. "vai experimentar o pensamento de todas as pessoas do mundo ao mesmo tempo agora, por meio segundo", ela disse. e assim aconteceu. foi apenas meio segundo, mas o surto telepático foi forte o suficiente para comprometer a minha sanidade permanentemente.

isso teve um preço. esqueci um monte de coisas, inclusive o primeiro passo. por isso não posso dizer quando me tornei andarilho. não sei quantos lugares visitei. ou, ainda, quantos mais tenho que visitar. fui embora dali atordoado. segui em frente andando. andar era a única certeza que havia me sobrado. e nem posso dizer que ando à procura de respostas, pois me foram roubadas todas as perguntas.

apenas ando.