domingo, 1 de fevereiro de 2015

a aldeia dos plenos de espírito

a cada metro percorrido, eu percebia outros andantes rareando. até me ver sozinho no trajeto. me questionei se estava no caminho certo.

em meu último destino, uma cigana que perambulava pela praça central da cidade veio até mim. ela se vestia com uma sobreposição de estampas coloridas, mas as cores perderam a vida com a ação do tempo. seu rosto estava semicoberto por um surrado capuz de linho. me ofereceu o mapa da aldeia dos plenos de espírito em troca de três bisnagas de pão. de acordo com a velha senhora, eu saberia quando chegasse ao destino. bastaria avistar no horizonte um arco-íris vertical que some em direção ao céu. "é o destino final para muitos andarilhos, mas sós os plenos de espírito são convidados a ficar", concluiu.

peguei o mapa e tomei o rumo ilustrado por ele. até chegar ao meio do nada. foi quando eu parei por um dia e uma noite para decidir se seguiria em frente ou não com as instruções do velho desenho.

ao final da pausa, decidi avançar.

em seguida, avistei a boca de uma caverna na base de uma montanha. fiquei intrigado. não haviam cavernas no mapa. supus que se tratava de um túnel e, para chegar a algum lugar, teria que passar por ele. e assim o fiz.

mergulhando cinco metros escuridão adentro percebi, ao fundo, um ponto de luz. minhas suspeitas se confirmaram: aquilo era realmente um túnel. apesar de não ser muito extenso, precisei andar com muita cautela. pouco se via dentro daquele claustro sinistro. à medida que eu me aproximava do outro extremo, uma silhueta se agigantava diante dos meus olhos. alguém vinha na direção contrária.

seria amigo? inimigo? talvez fosse tarde demais para voltar atrás. apertei o passo.

súbito: minha atitude teve igual efeito com o tipo na contramão. ele também apertou o passo. quando me contive, ele fez o mesmo. na medida em que fomos nos aproximando, fui percebendo, estupefato, de quem se tratava. não era à toa que imitava meus movimentos. estava diante de um reflexo distorcido da minha pessoa.

minha sombra.

uma versão minha desprovida de uma tez saudável, rosto anguloso pela evidente ossatura e dois buracos negros no lugar dos olhos. um pirilampo que passou rente ao seu rosto emprestou luz para confirmar minhas suspeitas. mas sumiu rapidamente, absorvido por um dos vácuos oculares sedento de substância física da minha contraparte.

a cada passo que eu dava, a sombra se aproximava de mim. numa coreografia fatal que poderia dar cabo de minha existência. a claridade ao fim do túnel estava próxima, mas eu só chegaria até ela se passasse pelo meu negativo. eu não sabia como fazer isso sem ser tragado pelo par de singularidades que ornavam seu esquálido rosto. e prometiam me levar ao total colapso.

foi quando eu tive uma ideia. partindo do pressuposto que a sombra imitava meus movimentos, como num espelho, se aproximando de mim a cada passo, resolvi realizar uma manobra inusitada. levei as mãos à altura do rosto e tapei meus olhos.

a gesto durou um breve instante. ao desbloquear a visão, ainda foi possível ver minha sombra se autoconsumir com o gesto reproduzido. foi muito rápido, o caminho estava livre.

saindo do túnel, avistei no horizonte o arco-íris vertical alardeado pela velha cigana. ela não havia me enganado. andei confiante em direção à coluna de cores refratadas e não tardou para eu alcançar a aldeia dos plenos de espírito.

talvez a minha jornada tivesse chegado ao fim. seria a aldeia o meu destino final? deixaria eu de ser um andarilho?

os limites da pequena utopia não eram claros. não se percebia onde terminava o ermo e começava os primeiros contornos. havia uma sublime exuberância no lugar. sua arquitetura desprovida de arestas emitia um certo grau de luminescência, oferecendo uma paisagem pitoresca. seus habitantes, todos alinhados em trajes claros de peça única, sem distinção de gênero ou casta, andavam de forma lânguida pelas ruas orgânicas da aldeia. pareciam flutuar. um deles se aproximou de mim e, com um olhar aguçado, me analisou profundamente.

"você não pode ficar aqui", sentenciou calmamente o nativo da aldeia. ele percebeu, em sua leitura que algo faltava em mim e que impedia minha permanência no local.

eu não era pleno.

então me dei conta do erro que cometi. não era pra ter destruído a minha sombra. eu deveria tê-la abraçado. a plenitude é o somatório de todos os tons. e eu havia acabado de aniquilar a minha paleta de breus.

agradeci o entendimento. e segui andando.

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