sexta-feira, 9 de outubro de 2015

o oceano de gelo

uma pequena eternidade andando sobre uma fina camada de gelo em um vasto oceano congelado. a memória de barro sob meus pés era cada vez mais imprecisa.

os velhos calçados de couro estavam desconfortavelmente úmidos. meus calcanhares doíam. minhas panturrilhas já estavam roucas: cansadas de gritar pela fadiga de tomar cuidado ao pisar no gelo fino. meus olhos se habituaram a não mais piscar. sempre atentos a uma possível ilha. ou orla. qualquer sinal de terra firme onde eu pudesse, finalmente, descansar o surrado corpo andarilho.

os passos que geravam rachaduras no gelo estavam cada vez mais frequentes.

eis que, cortando a névoa, em algum ponto a sudoeste do caminho (imaginando que tinha comigo a noção de norte), havia algo que se avolumava no horizonte. seria finalmente um seco destino?

a pressa e o entusiasmo inicial logo foram evaporando junto à névoa. as formas que desafiavam o olhar cansado logo ficaram nítidas e foram duras em seu recado: era apenas a ponta de um iceberg inerte. condenado pelo frio a não perambular pelo oceano.

antes que eu pudesse suspirar, desperdiçando minha escassa reserva de fôlego, percebi que dentro da estática montanha de gelo havia um estranho conteúdo. me aproximei para examinar melhor do que se tratava.

era o cadáver de uma sereia.

o corpo jazia triste e sereno dentro do gelo. não haviam sinais de luta. apenas de entrega a uma trágica sina. contemplando a invulgar beleza daquela múmia glacial, percebi um detalhe pitoresco: com sua mão esquerda, a sereia apontava para nordeste do iceberg (imaginando que tinha comigo a noção de norte).

seria, aquela última tentativa de gesto, um sinal? um aviso? poderia a besta congelada revelar-se um mórbido oráculo e oferecer uma direção? ou era apenas o acaso sendo jocoso com o fiapo de esperança que me restava? olhei mais uma vez à minha volta. e não havia nada além de uma paisagem cinza desprovida de horizontes.

respirei fundo e voltei a andar rumo a nordeste do iceberg. o gelo crepitava sob meus passos. me agarrei a única coisa que ainda me restava: a noção de um norte.


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